quarta-feira, 16 de maio de 2007

O HOMEM QUE NÃO OUVIRÁ DE TUDO

Música é o produto mais bem distribuído da terra, muito mais que qualquer bom senso ou senso comum - sinto muito, Descartes.

Em todo lugar, o tempo todo, sempre há música. Vizinhos ouvem música - todos os vizinhos ouvem música. Restaurantes não aprendem. Alguém vendeu a idéia de que, além de comer entrada, prato principal e sobremesa, somos obrigados a ouvir música. Não, não são bares com música ao vivo; não são botecos com chorões improvisados, nem porões enfumaçados com tabaco e possuídos de jazz – são música de fundo para acompanhar a comida: eis uma frase feita só de sacrilégios. E querem culpar os açúcares e as gorduras!

Mas há mais... Havia um supermercado que insistia no Concerto No.2 para piano e orquestra de Chopin – talvez por isso tenha trocado de donos. Deviam achar de bom gosto oferecer variedades de queijos, sortimento de legumes, exotismos de frutas, os melhores cortes de quanta fauna se deseje, acompanhados de vinhos intensos, maduros, alguns até austeros, enlevados em Beethovens encorpados e Vivaldis frutados.

Não me estenderei por elevadores, salas de espera, de embarque e desembarque, academias, todo tipo de evento esportivo, de culto religioso, de promoção comercial, de ato público, e de... telefones. Além de cacarejos eletrônicos ou trilhas inteiras de filmes da Disney, conseguiram se sofisticar e tocam Divertimentos de Mozart e – eu juro que ouvi – até o Adágio de Samuel Barber. Para não falar nos telefones celulares que “tocam” cento e dezessete distintas musiquinhas para chamar seu proprietário. Uma melodia para cada amigo, um tema para cada parente...

Minha sincera opinião é de que há música demais, uma imposição de música por toda parte. Precisamos de mais silêncio. Uma volta sutil a este estado magnífico de possibilidade e de escolha, de expectativa, de recusa e de vontade – silêncio.

Um silêncio feito de maravilha: a mais conhecida obra musical da humanidade – mais que qualquer canção dos Beatles – é o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven, que se constrói sobre a tensão de uma pausa; Miles Davis era o intérprete do silêncio; no Gênesis não há nenhuma menção nem ao silêncio nem ao som – a música é humana.

Parte de minha gula reprimida tem que se satisfazer nestas pilhas de livros que ensinam, medem, fotografam, tanta inatingível comida. Um dos meus preferidos é O homem que comeu de tudo, uma coleção dos hilários e brilhantes artigos de Jeffrey Steingarten para a Vogue americana. Ele pesquisa e experimenta produtos e receitas, se faz de cobaia para diversas dietas, discute o que dá sabor à água. E ele começa pela lista de suas repulsas gastronômicas e se impõe superá-las para que suas análises se livrem das suas idiossincrasias. Steingarten se dedica ao seu inesperado ofício (ele fora um bem sucedido advogado) buscando ser um homem que come de tudo.

A tarefa que me proponho não é nova ou inesperada. Já escrevi sobre música na imprensa e na internet, e há tempos desejo começar este “Clube”. A vontade é comentar o que ouvi, o que ouço, o que busco ouvir. O desafio é pôr em palavra esta experiência direta, concreta, auto-referente, auto-suficiente, auto-significada – música. E ele me parece mais complicado do que o de Steingarten.


Degustar é da inteligência do corpo. A fome tem o limite da primeira procura humana – a saciedade; a gula tem os caprichos luxuosos da humana elaboração de seus sentidos elevados à potência do pecado.

Ouvir música é uma experiência física da inteligência. Um entendimento corpóreo do tempo engendrando a memória e, assim, o que fomos, o que seguimos sendo, o que poderemos ser. Deveria ser um momento íntegro e feliz, abismado de percepção, de plena sensibilidade – que significa estar voltado a todas as direções.


Música é escolha: música para dançar, ninar, namorar, para lembrar e esquecer, para tocar (com, pelo menos, duplo sentido). Mas música também é para saber: de si mesmo, do outro, do mundo, do outro lado do mundo, de ontem, de hoje, de sempre. Música é tanta coisa que música não pode ser qualquer coisa. E por isso prometo não ouvir tudo.

Este Clube é do maestro apenas porque me dou o privilégio de convidá-los a participar dele. Vamos ouvir música. Tanta, que poderemos formar Repertórios que nada mais são do que escolhas. Tanta, que poderemos descobrir, entender, propor e trocar mais e mais Idéias. Tanta, que sempre retornaremos ao que a música é, ao que as idéias deveriam sempre servir: Diálogos. E tudo isso de forma despretensiosa e, tomara, divertida. Como num Clube.

Que eu encontre as palavras para falar dessa música muda e sem significado dizível.

E que Santa Cecília, a padroeira dos músicos, me ajude.

Um comentário:

Unknown disse...

Prezado Ricardo,
Agradeço a criação e ao envio de aviso semanal do seu blog, sempre com comentários inteligentes, informações interessante e links maravilhosos.
Mando prá você um link que acho divino e que recentemente postei no boletim da ABM.
http://www.youtube.com/watch?v=rj6rCbUcnxc&mode=related&search
Yo Yo Ma/Piazzolla
Abraços, Cida Fernandes