segunda-feira, 25 de junho de 2007

GRANDE ARTE

Eu sou um fã de diminutivos e acho que “cineminha” designa um programa inteiro – avaliar opções, comer pipoca, sair em silêncio de mãos dadas, comparar opiniões, voltar para casa feliz. Mesmo quando não gosto do filme. E não é coisa que se faça ou que se vá, mas como onda oportuna e de tamanho certo: “cineminha” é coisa que se pega.

Nós não pegávamos um cineminha há meses, por conta da gravidez, do parto, dos horários da amamentação, da falta de vontade de ficar longe da Lara. Outro dia nos programamos e seguimos a orientação da minha mãe: fomos assistir ao Um lugar na platéia (Fauteuils d' Orchestre de Danièle Thompson).

Ela tinha gostado do filme e elogiava aquilo que procurávamos: um filme bem feito, leve e despretensioso, para sair do cinema de alma leve. O que se costuma chamar de “obra de evasão” - um livro, um filme que sirva para esquecermos da vida, para fugirmos dela. Mas não é sempre assim? Não me lembro de uma obra marcante que não me tirasse do mundo tal como ele é. O melhor do que li ou assisti me tirou daqui, do agora, do que sempre nos enganamos ao chamar de realidade. Talvez seja mesmo esse o fundamento da fantasia: esquecer da realidade, fugir dela e, assim, provocar idéias, sentimentos, imaginação para o que a tal realidade, essa arrogância da mais precária das racionalidades, não dá conta. Sérgio Abranches usa uma expressão (no mais das vezes falando de cinema) que me parece perfeita: “intelectual de plantão”. O sujeito só pode ler, ver e ouvir coisas que contenham uma “mensagem”, que o faça “refletir”. Pois eu acho que gargalhadas adoçam o fígado e azeitam as engrenagens, que ver Paris nunca é demais, que personagens bens construídos não estão apenas no teatro grego lido no original. Quem me ensinou a amar os livros, as idéias e a necessidade de fantasiar foram uma boneca de pano, um sabugo de milho sabichão, um porco que era marquês reunidos num sítio com um menino corajoso, uma menina impertinente, todos adoçados por uma avó e uma cozinheira cheias de afetos, guloseimas e sabedorias.

Minha mãe, os comentaristas e críticos que encontrei tinham razão. O filme é uma delícia, o elenco é ótimo, as cenas de Paris, lindas. Mas, para minha surpresa, vi mais do que isso em Um lugar na platéia.



INCOMPLETOS

Certamente Jessica é uma moça vinda da província que quer seguir os passos da avó que trabalhara no Hotel Ritz, mas se contenta com o emprego de garçonete num café da Avenue Montaigne e não tem nem um lugar para dormir. Claro que que Catherine não se satisfaz com o sucesso popular ou com a fortuna que ganha na TV, que detesta o diretor da peça que está ensaiando e que quer muito interpretar Simone de Beauvoir no filme de um diretor americano que, por sua vez, não está feliz com o rumo do seu trabalho. Também é verdade que o pianista Jean-François Lefort trabalha e viaja demais e não agüenta mais o mundo artificial e superficial do circuito internacional de concertos, e que sua mulher, Valentine, não entende a cara feia do seu marido consagrado que não valoriza toda a dedicação dela, muito menos o desejo absurdo de morar à beira de um lago isolado. Também é verdade que Jacques Grumberg está triste pela viuvez, pela doença que enfrenta, pela briga interminável com seu filho Frédéric que acha seu pai um idiota em namorar a moça com quem ele próprio já teve um caso, e que não agüenta mais seu próprio casamento. Em resumo, todos eles estão insatisfeitos. Como é claro que, diante do sucesso e da fortuna de tanto deles, o filme poderia ser um desfile de mimados entre aplausos e milhões de euros. Mas não é disso que o filme trata.

O filme que vi nos apresenta um pianista doido para se livrar de tudo o que, em geral, mais se deseja: viagens internacionais, suítes nababescas, agendas e teatros lotados, ovações intermináveis, cachês milionários. Ele quer voltar ao que ama: a música, o piano, a sua mulher. Vi um filme sobre um homem que, tendo perdido a mulher com quem construiu tudo do que se orgulha, prefere vender o que acumulou porque precisa concentrar-se no essencial: viver. Seu filho precisa livrar-se da dor nas costas, do casamento traído, da amargura contra seu pai, para buscar o que está por ali, ao alcance das suas mãos cheias de possibilidades: uma escultura de Brancuzzi em que estará o que significa e o que promete – a memória da mãe, o presente do pai, o beijo de um futuro amor. Está lá. Como também a porteira do teatro que, faltando o talento para o canto, passou a vida perto dos artistas, acarinhada por eles, ouvindo e cantando, o dia inteiro, a música francesa que traz sempre pendurada nos ouvidos. Quem nos conta isso é ela, ao ser homenageada no dia de sua aposentadoria e nos confessar, singelamente, que, assim, foi feliz. Lá também há um feliz diretor de cinema que descobriu a estrela dos seus sonhos – inteligente, esperta, grande comediante, faminta, capaz de propor uma Simone que tinha que aturar aquele Sartre horroroso dado conquistas inúteis: ele era péssimo na cama. Mas a Simone que Catherine propõe tinha um motivo a movê-la, não uma razão a explicá-la – ela o amava. Felicíssima está esta atriz que, insatisfeita com fama e fortuna, está ali para nos lembrar que não nos enganemos – a felicidade está lá, incompleta, a realizar-se, onde ela sempre estará: além. O sucesso, como indica a sua raiz latina, succedere, não é um lugar aonde chegamos, mas algo em que podemos permanecer. O nome que damos a esta busca nomeia nossa vida. Sabendo que a fama e a fortuna trazidas pela ridícula série de tv em que trabalha não a satisfará, ela está ali para realizar aquilo com o que escolheu batizar-se - a sua arte.


CINEMINHA

A arte me parece ser a grande estrela do filme, seu tema e sua revelação. A de fazer música, de representar, de dirigir. Eles estão todos ali para mostrar que ela não está apenas no aplauso: até as platéias parisienses podem ser muito ignorantes. Ela também não está apenas na obra: colecionar, possuir, reter, não é ter a arte. Ela não está em parte alguma senão naquilo que Brancuzzi não adivinhava ao esculpir na pedra um beijo, ou em cada nota que Jean-François cavou para compreender e compartilhar Beethoven, como na paixão do colecionador Jacques e da porteira do teatro, e da mulher do pianista. Jessica está feliz. Conheceu tanta gente, viu o mundo para além da província, conseguiu seu emprego, já não perde tempo chorando por pena de si mesma, nem tem medo de não encontrar um lugar para dormir – ela fez vários amigos. Sua avó veio visitá-la, ela ganhou um beijo de um homem que acaba de entender que ainda pode amar e está próxima dos artistas melhores que há. Não porque são famosos ou ricos; mas porque não estão dispostos a trocar nada pela busca, incessante, interminável, da arte. Ela sabe o lugar que quer: “um lugar na platéia – nem tão perto, nem tão longe”. Esse é o lugar da arte. Nem do autor, do intérprete ou do público, a arte está sempre sendo feita em algum lugar, em diversos momentos, entre eles. Como a felicidade, ela está além. Saí do cinema feliz.

4 comentários:

Arte disse...

Como frequentadora assídua do que chamo - Escurinho do Cinema (não há, para mim, TV´s de máximas polegadas nem resoluções, que substituam salas de cinema), fui com uma amiga assistir: Um lugar na platéia. Por coincidência ia falar sobre ele aqui no seu blog e hoje me surpreendi com o seu comentário. Que maravilha! Tudo o que gostaria de dizer, você já falou. Muito bom ter amigos sensíveis e inteligentes. Dá nisto!
Um abraço grande
Arte

Anônimo disse...

Um excelente "cineminha" ´é aquele que vc. vai com uma querida amiga porque outra amiga querida lhe disse - "Vá ver o filme UM LUGAR NA PLATÉIA" é uma delícia!... Você vai e diz ao filho e à nora: _Vão ver o filme..." tem trilha sonora belíssima, tem Paris magnífica, tem sensibilidade, tem humor, tem amor... e tem a bela crônica escrita por um filho muito "ESPECIAL"!!!! Valeu a minha sujestão.
PS. E ainda fiquei com a LARA para os dois irem ao "cineminha"...
Beijos

Anônimo disse...

Ricardo,
Dando continuidade às tietagens sobre espetáculos, fui assistir a Alma Imoral.
Vale a pena pelo trabalho da Clarice Niskier, pelo texto, pela escolha da delicadeza, humor e simplicidade para traduzir questões "do humano".
Compartilhando que, felicidade está além, saí da peça com a minha alma lavada e enxaguada.
Deixa a Lara com a avó!
Bjs
Ana Isabel

ines bachiega disse...

Ricardo, apesar de eu ter trauma com diminutivos...rs...vou seguir sua sugestão e tentar assistir esse filme. Justificando, sou professora de educação infantil e estou farta de ouvir'escolinha', 'livrinho' etc ...KKK
encontrei seu blog no anuário VIVA MUSICA e o convido a conhecer a produtora direcaocultura.com.br e o selo kalamata.com.br, onde também trabalho com meu cunhado, idealizador e diretor da empresa, onde a música instrumental é a prata da casa, além do teatro e projetos vários. abraço e sucesso
Inês Bachiega